Aline da Rocha Schultz
Como toda mulher, seria meiga, submissa, dependente, vaidosa, passiva. Daria muito amor ao marido e aos filhos e amaria os outros antes de amar a si mesma. Assim altruísta, estaria sempre pronta a servir, vivendo em função do que vão pensar dela, única fonte de afirmação de sua própria personalidade. Emotiva, sensível, intuitiva e imprevisível, irracional, incapaz de se concentrar, ninguém esperaria dela grandes realizações, mas sempre lhe ficaria a possibilidade de se realizar através dos outros, por exemplo de um homem amado. Ele sim, seria ativo, agressivo, independente, e objetivo, cheio de projetos, de desejos, querendo ser alguém, ter sucesso e deixar a marca de sua passagem pelo mundo. Na história da passagem dele pelo mundo, o papel dela seria o de apoiá-lo afetivamente, garantindo a harmonia de uma família, o calor de um lar, tão tranquilo que ele nem precisaria se preocupar. E com essa paz de espírito, com essa retaguarda assegurada, ele partiria para suas aventuras, estável, sólido, voluntarioso e não se deixando levar pelos sentimentos. Ela, da soleira da porta, ficaria jogando beijo, um olhar carinhoso, um ―vai com Deus (OLIVEIRA, et. al, 1996, p. 25).
A definição de papéis sociais e de locais sociais específicos e distintos para homens e mulheres na atualidade é fruto da naturalização de representações sociais que subjugam as mulheres e decretam a elas espaços pouco valorizados e de baixa remuneração. Assim como na citação acima de Oliveira (1996), às mulheres pretende-se resignar os espaços do lar e dos cuidados com os filhos e com o marido, mas, quem pretende? As pretensões sobre quais locais na sociedade destinam-se as mulheres estão impostas e naturalizadas nas estruturas da cultura, estão na mente e na mídia, no imaginário social e assim como foram construídas podem ser descontruídas. Sobre a construção dos papéis sociais para os corpos sexuados fala-se de gênero.
No entanto, o que é gênero?
Por gênero entende-se “uma maneira de se referir às origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas dos homens e das mulheres. O gênero é, segundo esta definição, uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado” (SCOTT, 1990, p.7). A este respeito, Scott (1990) afirma que “gênero é um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é um primeiro modo de dar significado as relações de poder” (p.14).
Se existem relações de poder, nelas está presente a dominação de um indivíduo sobre o outro, e, particularmente analisando as relações entre os sexos, é notória a dominação masculina. Bourdieu (2010) afirma que “simbolicamente, [...] as mulheres só podem exercer algum poder voltando contra o forte sua própria força, ou aceitando se apagar” (p.43).
Ciente da necessidade da desconstrução dos papéis sociais atribuídos a homens e mulheres e que, de maneira latente ou manifesta estes naturalizam desigualdades de acesso e permanência de ambos os gêneros em ambientes públicos e privados, e que instituem relações de dominação que podem vir a gerar violências, o Centro de Referência de Atendimento à Mulher em Situação de Violência - CRAM é uma unidade voltada para a efetivação de Política Públicas que orienta suas ações com intuito de se fazer cumprir os Direitos Humanos para as Mulheres e almeja a ressignificação de modos de existir para os indivíduos em sociedade, principalmente para mulheres em situação de violência.
Ao tomar o cenário estadual como análise, segundo o mapa do feminicídio de Mato Grosso do Sul, no ano de 2019, 30 mulheres foram vítimas de feminicídio e 98 sobreviveram para contar sua história, a cada dia 51 mulheres denunciaram terem sido vítimas de violência doméstica e a cada hora duas mulheres foram vítimas de ameaça de morte o que torna evidente a necessidade da efetivação de instituições como o CRAM na rede de atendimento às mulheres vítimas de violência. Contudo, como o CRAM pode atuar na efetivação dos direitos humanos para as mulheres?
De acordo com as Normas Técnicas de Uniformização para Centros de Referência de Atendimento à Mulher, os Centros de Referência devem ser espaços de acolhimento, tendo como princípios norteadores de suas ações:
a) Atender às necessidades da mulher em situação de violência; b) Defesa dos direitos das mulheres e responsabilização dos agressores; c) Reconhecimento da diversidade das mulheres; d) Diagnosticar o contexto em que o episódio de violência se insere; e) Evitar ações de intervenção que possam causar maior risco à mulher em situação de violência; f) Articulação com os demais profissionais dos serviços da Rede; g) Gestão democrática. Envolvimento de mulheres no monitoramento das ações. (NORMA TÉCNICA DE UNIFICAÇÃO PARA CENTROS DE REFERÊNCIA DE ATENDIMENTO À MULHER, 2016, p. 16)
A violência contra as mulheres é uma forma de violação dos direitos humanos ao atingir o direito à vida, a saúde e a integridade física, é entendida como um fenômeno de origem cultural, construída e naturalizada na vida cotidiana, e por isso deve ganhar destaque nas discussões que envolvem os direitos das mulheres, ao considerar que as violências sofridas pelas mulheres são silenciosas e veladas.
As ações do CRAM contribuem para a efetivação dos direitos humanos para as mulheres por serem pautadas no questionamento das relações de gênero, base das desigualdades sociais e da violência contra as mulheres, voltando sua atenção ao enfrentamento de todas as formas de violência (sexual, moral, física, psicológica e patrimonial), além de situações como tráfico de mulheres, assédio sexual e moral.
Sabe-se que as ações do CRAM de forma isolada não obterão resultados significativos para a sociedade, é necessário uma rede de enfrentamento a violência engajada por diferentes setores da sociedade, dispostos a mudar como pensamos as maneiras de existir e ser mulheres e homens nas relações sociais, enquanto isso não se efetiva, as ações do CRAM proporcionam mudanças significativas na vida das mulheres que já sofreram violência, trabalhando para o dia em que seus serviços não sejam mais necessários, não pela negação da violência mas pela total conquista de equidade de direitos entre os sexos.
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